quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Por entre as paredes desta sala...

É uma coisa muito interessante usar um computador da faculdade de letras com um sistema operacional com nome de macumba, enquanto um amigo meu se esforça do meu lado para terminar um trabalho. Enquanto isso eu penso: é bom postar coisas assim aqui, quando eu posto algo sério poucas pessoas lêem...

Penso também em ir lá ler as coisas necessárias...

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

A Revelação

“Mas amamos, porque Deus nos amou primeiro.” Primeira epístola de São João (4:19)

"e ao vir os serões e os fiéis enganos
amar os sonhos que restarem frios." Jorge de Lima - Invenção de Orfeu (I:XXVI)

Era quando as borboletas fizeram nascer madrugada naquelas pétalas. Eu amo! Sim, ruas, prédios, pássaros e passos perdidos no oceano dos sentidos. Eu amo! E isso ecoou em sua mente três vezes naquela hora, e como se por ímpeto ou por não querer ter mais a fazer foi procurar diante o rosto um negócio pra completar o verbo. Nada. Simplesmente não sabia o que amava.

Era poeta e era músico também, ou pelo menos tentava, andava com uma xerox na mochila mastigada pelo descuido vendo lágrimas do tempo escoarem das paredes. Precisará ler o texto, dizia a lembrança das lágrimas. Mas essa agora! Não conseguirei ser nem poeta, nem músico, nem cientista, nem engenheiro, nem gari, nem porra nenhuma se não tiver responsabilidade, e me deu de amar agora! Mas eu amo! E precisava amar algo, talvez não alguém ainda, mas algo. Talvez se eu reparar melhor a cor das coisas eu comece a amar alguma... lançava o olhar sobre o céu, isso é só branco, e sobre um passarinho, isso é só laranja e branco, e sobre a rua suja de terra, é só marrom e está sujando o meu tênis, e sobre o texto xerocado, é só uma chatice sem cor... e quanto mais via, mais as cores se escapavam de seu sentimento tornando-se apenas o cinza, e não se pode amar cinzas.

Pera aí, são quatro e meia, senhora. Puta merda, estou atrasado! Não iria chegar a tempo pra Master Class. Meu professor vai me foder! Ele quer me ver tocando aquela música pro cidadão lá do cu de Judas e eu não vou chegar a tempo! E as horas, como se quisessem vê-lo correndo contra elas, alçaram vôo no abstrato dos ponteiros e de pressa um minuto veio em direção às cinco. Definitivamente não amo o tempo nem o horário de verão. E o pequeno tique quase real indicando o segundo, ecoando de seus olhos pro fundo de sua mente tinha quase o som daquela nota lá do início da música preparada pra tocar na aula perdida. Então eu amo a música? Ou a poesia? Fazia sentido, ele estuda e rala pra ser bom nas duas coisas ou numa das duas coisas, existe gente falando ser impossível ser bom nas duas, mas e daí? Não, não me dedicaria tanto se as amasse, o som me incomoda, o som das palavras e das coisas assim como as próprias palavras e as coisas e o significado de cada uma delas, como um cachorro morto pode significar aquele cromatismo descendente prestes a bater num carro, se bater naquele carro vai ser trítono chorando flores, não... por essas e outras nem de arte eu gosto! Além disso, amar a poesia pode ser traiçoeiro, sou anacrônico na poesia, e se sou anacrônico, mas mesmo assim escrevo aquilo sem saber donde vem, então a poesia está me traindo, como eu posso amar um negócio traiçoeiro? E quanto mais ele pensava sobre isso mais anacrônicas ficavam as palavras e mais terríveis ficavam o som delas e o som das coisas e o som das notas, e não se pode amar o grito do tempo terrível do anterior.

Posso amar minha casa, onde eu queria estar agora, na minha casa. De vez em quando invento coisas pra colocar no jardim. Mas não existe jardim, eu moro num prédio! Aí eu invento um jardim na minha psicose pra colocar coisas no jardim. Algumas pálpebras de aurora, uma sombra fugitiva, fel espalhado na terra com rins rasgados sem piedade, não... o jardim da minha casa me incomoda como as palavras, e se miro os olhos pro meu quarto eu me deparo com a realidade de mim mesmo, eu não quero ser aquela ampulheta em cima da escrivaninha, não gosto dessas coisas de tempo... não quero ser aquela réplica do MyFlower com meu pássaro na frente, não, aquela mitologia de meu quarto com vômitos de onde saem heróis ultrapassados e na cabeça jardins de velho testamento com argilas messiânicas. E quanto mais ele pensava em sua casa, mais sentia dores pelas coisas inventadas dentro dela, e não se pode amar a dor.

Desviando de sua casa, já impregnada pelas dores, e também das cores e também do tempo e também das palavras e também dos sons e também das aulas e também das xerox, ele pensou, enquanto andava em direção a estar perdido, sobre a sua família e quanto mais ele andava mais se aproximava do calor de um astro queimando na eternidade, entanto pensava em sua família e o carinho o aliviava. A minha mãe, o meu pai, os meus avós, meus tios, meus primos, sim, eles são pessoas boas, lembro de quando meus avós fizeram de tudo pra me aliviar enquanto meus pais se separavam, é, pena deles terem se separado, o signo deles batia direitinho, mas minha mãe acabou traindo meu pai... isso não teria acontecido se fosse a umas gerações atrás, meu avô traia a minha avó e ela vivia em silêncio, como se o sofrimento e a mudez fossem um preço a ser pago, não sei se isso é amor, pensando bem, e se eu não fosse filho único, seria a mesma coisa? E quanto mais ele pensava em sua família, mais ela se transformava em traição como as palavras o eram, e não se pode amar a traição.

Mas ela... é verdade, talvez eu a ame, há dias me perco em seus olhos querendo abaixo tocar os seus lábios e adiante os lisos cabelos tão raros no crânio... talvez eu a ame. Pensava de ingênuo, mas logo no peito espelhou seu semblante e a dúvida então de crisálida veio... Amor não é sonho beijando o seu seio nem é desejar penetrar o seu ventre com nuvens de vinho tingindo as estrelas, meu peito requer o luzir do infinito, estrelas de pingos de lágrima e não de vinhos ou ácaro-mitos por entre seu corpo de plástico ou pluma no em vão. E quanto mais pensava nela, mais via ser vil a paixão sentida, e não se pode amar a vileza.

Estava quase em casa e nem sabia, talvez guiado pelo instinto ia chegando lá... Talvez... é isso, eu amo a Deus. E as cores ressurgiam... Não são as nuvens, ou relógios, nem os sons, a mímese das letras mortas, é Deus quem amo, quem procuro e quem parece não me ver, pensando bem... E quanto mais em Deus pensava mais ia sumindo a face pelas mágoas sem nem fazer a luz do verbo, Ele não existe... e repetia e repetia e repetia, como se essas três palavras formassem a sua trindade de esquecimento, amava, mas não se pode amar o inexistente.

Já estava em casa e chorava sem derramar nenhuma pétala de lágrima. Se ao menos eu tivesse um sinal! Se ao menos alguém me abraçasse, me pedisse um negócio ou me apontasse um negócio pra amar, mas não, não há ninguém para ao menos recusar minha companhia por estar lendo os versos de Horácio... mas deixe, eu me recuso amar alguém... pessoas... esses pombos sem asas vagando pelo mundo, fazendo loucuras nos ônibus, pegando em mim quando eu quero ficar sossegado e quando como agora, queria um abraço, uma palavra de carinho, um tapa na cara, alguma coisa, nada me dão. E não sinto sequer a bruxa presa na zona de luz. Nada, mas o sentimento está aqui, eu amo! Se pelo menos o tempo passasse e eu pudesse esquecer tudo amanhã, mas meu maldito relógio estragou e marca apenas quatro e meia, quatro e meia soando aquela maldita nota lá no fundo da minha cabeça enquanto penso na Master Class que matei. Anoitece, e são ainda quatro e meia, cedo demais pra dormir, cedo demais para confissões, posso não sentir nada. Mas eu amo! E quanto mais o tempo passava, mais o amor sangrava em sua cabeça, seu rosto, sua boca, suas mãos, tingindo todo o seu corpo de silêncio.

João Antônio Marra Signoreli